Descobrimos
o gene da linguagem?
FOXP2
Há pouco tempo,
jornais andaram alardeando a descoberta do gene da linguagem. Num trabalho em
equipe, linguístas e geneticistas publicaram, na revista americana Nature (respeitada
publicação científica), a descoberta de um gene que estaria diretamente
relacionado à linguagem.
Para chegar a tal
descoberta, pesquisadores sequenciaram o DNA de uma família que apresentava
diversos casos de um distúrbio que afeta apenas a linguagem, chamado specific
language impairment (SLI) - em português, déficit especificamente linguístico,
DEL. O DEL, na verdade, abrange diversos tipos de distúrbios de linguagem. O
que todos têm em comum é o fato de não estarem associados a nenhum outro problema
de "inteligência". Para o diagnóstico do DEL,
são descartados problemas neurológicos, motores, auditivos. Apenas a linguagem
parece estar afetada. Outra característica do DEL é que os casos dificilmente
ocorrem em indivíduos isolados. Eles se repetem numa mesma família e são mais
comuns em gêmeos idênticos (originados de um mesmo embrião, se desenvolvem na
mesma placenta) do que em gêmeos fraternos (originados de embriões diferentes,
se desenvolvem em placentas diferentes), sugerindo a atuação de um componente
hereditário.
Desde 1990, uma
família que apresenta diversos casos de DEL vem sendo estudada. Em 1998, os
mesmos pesquisadores do artigo da Nature já haviam relacionado o distúrbio com
um pequeno segmento do cromossomo 7. Mas somente agora, com a descoberta de um
indivíduo que não pertence à família, mas que apresenta exatamente as mesmas
dificuldades com a linguagem, a relação pôde ser confirmada, e mais:
identificou-se o gene envolvido no tal pedacinho do cromossomo 7. O "gene
da linguagem" chama-se FOXP2.
Mas será mesmo que
apenas um gene, tão pequenininho, é capaz de ser responsável pela linguagem?
Seguindo este raciocínio, dá pra separar linguagem do resto da inteligência? O
que é a linguagem sozinha, só a forma, sem o conteúdo? Como falar de linguagem
sem falar do conteúdo que expressamos por meio dela? E como pode o gene afetar
só a linguagem sem afetar a inteligência?
Se, de fato, o gene
estiver relacionado à nossa faculdade da linguagem, seria mais uma forte
evidência para a especificidade dessa habilidade humana, ou seja, uma forte
evidência para uma independência entre linguagem e "inteligência".
Para pensar se isto é
possível ou não, é preciso esclarecer o que estamos chamando de linguagem, pois
este é um termo abrangente, que permite diferentes interpretações.
O que é linguagem, afinal?
Num sentido amplo,
linguagem pode ser entendida como o conjunto de habilidades que nos permite
produzir e compreender enunciados.
Não é preciso ser
nenhum especialista para perceber que a linguagem humana é composta por pelo
menos:
a.
significado (aspectos semânticos)
b.
som (aspectos fonéticos)
c.
estrutura interna (aspectos sintáticos)
Pois bem, para alguns
pesquisadores, estes componentes são completamente inseparáveis. Interagem o
tempo inteiro, não sendo possível falar de um sem mencionar o outro. Nem mesmo
para fins descritivos é possível analisá-los separadamente.
Já um outro grupo de
pesquisadores acredita que os componentes acima são isoláveis - não só para
fins descritivos, mas porque esta é a forma de organização da linguagem.
Evidências para este ponto de vista vêm principalmente do estudo das chamadasafasias.
Mas as diferenças
entre estes dois grupos vão mais além. Para os pesquisadores do primeiro grupo
- o dos componentes inseparáveis - nasceríamos com um mecanismo cognitivo
geral, com um mecanismo geral de aprendizagem. A partir do momento em que somos
expostos aos dados (ou informações) do meio externo - com características
linguísticas, matemáticas, espaciais, visuais, musicais, por exemplo - formamos
diferentes "subsistemas" cognitivos, isto é, vamos separando as
diferentes partes da nossa "inteligência". Mas, por trás destes
sistemas, estaria um mecanismo cognitivo geral - e por isso chamaremos este
grupo de generalistas. Este entendimento da cognição humana tem origens na
teoria piagetiana de desenvolvimento, segundo a qual todos os domínios da
cognição estão intimamente vinculados, e são dependentes de um mecanismo geral
de aprendizagem, de natureza provavelmente lógico-matemática.
Por outro lado, para
os pesquisadores do segundo grupo, não nasceríamos com um mecanismo geral de
inteligência. Ao menos no que se refere à linguagem. Todos os seres humanos
nasceriam com determinadas expectativas do que são e de como funcionam as
línguas humanas; nasceríamos com um mecanismo inato para a adquirir linguagem,
sem qualquer esforço, sem que precisemos atuar cognitivamente sobre o objeto
"língua". Esta posição, que ficou conhecida como hipótese inatista da
linguagem, foi formulada inicialmente em 1959 pelo linguísta Noam Chomsky.
Segundo a hipótese
inatista, portanto, já nasceríamos com uma predisposição - ou, como preferem
alguns, um instinto -
para a linguagem. Como nossa linguagem é muitodiferente da
linguagem de todos os outros animais, é bastante razoável supor que haja uma
relação direta entre linguagem e código genético. Mas, se a capacidade para a
linguagem está codificada no código genético, como explicar a diversidade das
línguas existentes no mundo?
Neste ponto, não há
como dispensar as informações vindas do meio externo. No momento em que a
criança é exposta a uma língua, suas expectativas a respeito de línguas humanas
vão sendo moldadas de acordo com a língua em questão. Por isso, as crianças
nascidas no Brasil falam português, e as nascidas no Japão, japonês. Mas é
fundamental contar com um aparato inato, e não apenas com a experiência. Porque
os dados da língua a que as crianças são expostas são fragmentados, truncados,
não-organizados. Algumas mães corrigem os filhos, outras não. Alguns pais
conversam muito, outros não. Existem até mesmo culturas nas quais não se pode
dirigir a fala à criança até que ela tenha 5 anos, pois só a partir desta idade
ela passaria a ter alma. E, ainda assim, qualquer criança adquire uma língua
sem fazer o menor esforço, e este processo acontece no mesmo período de tempo
para todas as crianças - respeitadas pequenas diferenças individuais. A exceção
fica por conta de casos em que se negou à criança, deliberadamente, qualquer
contato com uma língua (leia mais).
Segundo esta
perspectiva, portanto, deve haver em nossa mente algo exclusivamente
linguístico que possibilita a realização da linguagem sem que precisemos nos
preocupar em como aprendê-la (diferentemente de amarrar os sapatos, por
exemplo, tarefa bem mais complexa para a criança).
Na mesma linha de
raciocínio, se há, desde o nascimento, uma especialização inata para a
linguagem, por que não pensar em especialização inata também para os outros
sistemas - ou módulos - cognitivos? É o que defende este segundo grupo de
pesquisadores, que chamamos aqui de "modularistas". Para eles, o
sistema da linguagem, o sistema espacial, o sistema visual, por exemplo, são
sistemas independentes; esta independência é inata e cada módulo ou sistema
estaria especificado geneticamente - diferentemente do que supõem os
generalistas.
A descoberta do gene
FOXP2, que seria o "gene da linguagem", coloca mais lenha na fogueira
da discussão: será que descobrimos a prova de que a linguagem é definida
geneticamente? E, assim, poderíamos falar em mecanismos inatos exclusivos para
a linguagem?
A linguagem vem dos genes?
A relação do gene
FOXP2 - um pedacinho do cromossomo 7 - com a linguagem surge para dar
sustentação empírica a uma ideia que vinha sendo discutida há anos, mas que
carecia de evidências concretas: uma base biológica inata específica para a
linguagem, e não a linguagem pertencendo a um indiferenciado bloco inicial
"inteligência". Pois existem pessoas que têm uma inteligência
"normal" e dificuldades apenas com a linguagem, e o que as faz
diferente é justamente a alteração em um gene...
Mas será que o gene é
responsável por todo o sistema da linguagem?
Ao que tudo indica,
os problemas que
pessoas com DEL apresentam não abrangem todos os aspectos da linguagem, apenas
alguns. E, de fato, dificilmente o tal gene envolvido na linguagem se refere a
todos os seus aspectos. Isto porque esta é uma função muito importante e
complexa, e seria pouco lógico que um, e apenas um, gene fosse responsável por
tudo. É mais provável que funções complexas como a linguagem sejam consequência
de complicadas interações genéticas (leia mais).
De qualquer maneira,
a descoberta dos pesquisadores só vem contribuir para abrir um novo e
gigantesco campo de discussão sobre um dos mais fantásticos dons da espécie
humana: a linguagem.
Se você se interessa
por estes assuntos, dê uma passadinha na página dowww.cerebronosso.bio.br.
Embora não seja dedicado à linguagem, exclusivamente, lida com assuntos de
mente e cérebro de forma simples, para leigos, mas sem perder a seriedade.
Existe também o livro
de Steven Pinker, Instinto da Linguagem, que vale a pena ser lido.
Maria Cláudia de Freitas
Mestre em Linguística pela PUC - Rio